A questão das transmissões televisivas e o futuro do futebol português.

O facto do futebol português ser tricéfalo é tão obscenamente evidente e óbvio, que quase soa ridículo sequer (re)afirma-lo.

A opinião comum que atravessa o país de norte a sul é que benfica, porto e sporting são e historicamente sempre foram os três grandes clubes portugueses: é este o código genético do futebol em Portugal, poder-se-ia dizer.

Outra evidência que se tornou um lugar-comum surge acerca da competitividade do principal campeonato português: é generalizada a opinião que aponta para uma crescente competitividade.

Tal, porém, não acontece se tivermos em conta a diferença pontual entre o monstro tricéfalo e os restantes clubes. Para comprovar isto mesmo, entregamo-nos ao seguinte exercício: contabilizar anualmente, desde a época 1980/81, a diferença pontual entre o primeiro classificado não pertencente ao monstro tricéfalo e o último classificado do tridente benfica, porto e sporting.

Os resultados, provavelmente, são surpreendentes.
Antes de mais, e tendo em conta a média de cada década, verificamos um progressivo crescimento médio da diferença pontual: 2,9 pontos/ano na década de 1980, 4,4 pontos/ano na década de 1990 e 5,5 pontos/ano de 2000 até a actualidade – e isto apesar do fenómeno boavista do início da década.

Este panorama negro é muitíssimo agravado se nos debruçarmos somente nas últimas cinco temporadas: diferença pontual média de 11 pontos/ano - diferença abismal quando comparada a média de 0,4 pontos/ano da segunda metade da década de 1980.

Mas até determinada altura a vitória valia somente dois pontos, poderíamos objectar.

Mesmo considerando este factor (o sistema dos três por vitória foi introduzido na época de 1995/96), os dados são inequívocos: a diferença média anual foi apenas de 1,6 pontos na segunda metade da década de 1990.

Regressámos ao início poder-se-ia dizer. Se porventura nos encontrasse-mos situados entre as massas adeptas do monstro tricéfalo, este artigo provavelmente terminaria aqui. Acontece que não estamos...

E agora surge a pergunta difícil:

“Por que é que o fosso tem vindo a aumentar?”

Sem desconsiderar as importantes razões históricas, de gestão, de formação e de grandeza associativa e adepta, surge-se-nos no topo desta realidade dois factores: a sportv e o exponencial aumento das transmissões televisivas e, consequentemente, das receitas; a liga dos campeões e os seus milhões.

A sportv começou a emitir no início da presente década, passando a transmitir quatro jogos semanais em 2004. Não obstante as receitas televisivas terem aumentado para a generalidade dos clubes, os grandes beneficiados da nova realidade foram, sem dúvida, os clubes que compõem o monstro tricéfalo, que arrecadam uma percentagem gigantesca do bolo destas mesmas receitas.
Quanto à Liga dos Campeões, a prova substituiu a Taça dos Campeões europeus na época de 1992/93, tendo o futebol português obtido o direito de participar com dois clubes na época de 1998/99 e com três em 2005/06 – curiosamente na época seguinte a diferença pontual entre o 4º classificado e o terceiro atingiu o máximo no período que consideramos: 17 pontos.

Na realidade, ambos os factores provém de um só, visto que os milhões da Liga dos Campeões são gerados sobretudo pela venda dos direitos televisivos da competição.

E então?, poder-se-ia perguntar.

Atente-se a uma pequena (grande) notícia com origem na agência Lusa.
O título era o seguinte: “Transmissões televisivas - Clubes pequenos querem crescer mais”.
Imediatamente, no primeiro parágrafo, é expresso o revés desta pretensão:

“Os clubes de menor dimensão sonham com uma repartição mais "justa" dos direitos de transmissão televisiva, que a Liga de futebol pretende centralizar, mas os "grandes" parecem determinados em manter os acordos individuais como uma das principais fontes de receita.”

As palavras chave aqui são a pretensão de centralização dos direitos televisivos por parte da liga e também a determinação do monstro tricéfalo em manter o status quo dos acordos televisivos.

Em relação ao primeiro aspecto, Hermínio Loureiro afirmou, no 7 de Outubro, em entrevista ao Porto Canal, que a centralização dos direitos televisivos na Liga é “uma recomendação do Livro Branco do desporto europeu, que incorpora o estudo coordenado por José Luís Arnaut”. Acrescentou que “Neste momento, entre os 32 clubes das competições profissionais há sete que não têm os direitos televisivos negociados e que estão dispostos a que seja a Liga a fazê-lo”.
Entretanto, outros clubes da Primeira Liga já se pronunciaram em relação à questão, afirmando Emílio Macedo, presidente do Vitória de Guimarães que “Se uma negociação directa da Liga garantir mais dinheiro, é assim que vou defender o meu clube. Mas acho complicado isso acontecer devido aos interesses dos grandes, com um poder enorme que não parecem estar dispostos a perder”.

A reacção do monstro tricéfalo?

“Os três "grandes" escusaram-se a falar sobre as suas intenções à Agência Lusa...” Elucidativo...

E quanto à Liga de Clubes? Certamente que defenderam a posição veiculada por Hermínio Loureiro...

Puro engano!
Somente oito dias após o seu presidente ter afirmado o que acima já citámos, o organismo considerou não ser este “o momento oportuno para se falar sobre o tema”.

O Estudo Independente Sobre o Futebol Europeu (vulgo Livro Branco do desporto europeu), aprovado pela União Europeia e tornado público em meados de Julho de 2007, aponta em relação a esta temática um conjunto de medidas e recomendações das quais devem ser destacadas as seguintes (pp. 13 e 16):

- O Desporto não é nada sem competição estimulante e diversificada sendo portanto
legítimo que as entidades governativas desportivas pensem na adopção de medidas
que possam ser adoptadas para proteger e promover a competição. Se estas
matérias forem deixadas inteiramente às “pressões normais do mercado” então há o
risco de que o resultado de uma competição desportiva seja determinado apenas
pelo dinheiro. Não pensamos que este seja o caminho a seguir.

- Olhando agora para as matérias mais comerciais, deve notar-se que o marketing
centralizado dos direitos comerciais (em particular nos meios de comunicação) é
também um mecanismo útil para levar a cabo a redistribuição financeira e, desse
modo, reforçar a estrutura competitiva do Desporto europeu. O sistema de
marketing centralizado da Liga dos Campeões da UEFA pode ser visto como um
modelo neste aspecto, um facto, de resto, reconhecido pelo Advogado-Geral no caso
Bosman. Por isso, deve acolher-se positivamente que a Comissão europeia haja
aprovado este sistema de marketing centralizado e haja seguido abordagem idêntica
em situações nacionais quer na Alemanha (Bundesliga) quer em Inglaterra (Premier
League).

- Finalmente, e para evitar dúvidas, não há qualquer objecção legal à cumulação de
actividades reguladoras e funções comerciais nas entidades governativas desportivas.
Este facto já foi implicitamente reconhecido pela Comissão europeia quando aprovou o marketing centralizado dos direitos comerciais da Liga dos Campeões da UEFA.

O Estudo, ao referir o sistema utilizado pela UEFA na Liga dos Campeões, aponta não só o caminho do futuro como – sem ser sua intenção – ridiculariza a posição dos clubes que compõem o monstro tricéfalo em relação aos acordos individuais para as transmissões nacionais.

Das páginas 34 e 35 do regulamento da Liga dos Campeões:

- A UEFA detêm legalmente e em exclusivo os direitos comerciais da competição.

- Os direitos comerciais englobam quer os direitos televisivos, quer os direitos de marketing.

- A UEFA expressamente detém todos os direitos comerciais e reserva em exclusivo para si a exploração, retenção e distribuição de todas as receitas provenientes desses mesmos direitos comerciais.

O que é que isto significa na prática?

Que o monstro tricéfalo assume proporções cada vez maiores e mais grotescas por beneficiar dos milhões da UEFA, ou seja, aceita neste caso o acordo colectivo obtido pelo organismo máximo do futebol europeu no que diz respeito a direitos televisivos e outros. Ao fazê-lo, beneficia da repartição igualitária dos milhões pagos pelas televisões dos países mais ricos da Europa, milhões esses que entrariam maioritariamente nos cofres dos grandes clubes europeus caso estes negociassem directamente os direitos televisivos.

A transposição deste mesmo sistema para a Liga portuguesa é, todavia, considerada impensável pelos elementos do monstro tricéfalo. Hipocrisia à parte, compreende-se porquê.

Já em relação à LPFP – composta por 32 clubes e não por três – não se pode compreender que continue a ser servil em relação ao monstro.

De resto, o servilismo parece se estender à maioria dos restantes clubes da primeira Liga.

Como se costuma dizer: filho de escravo, escravo é...