História de Matateu - 4ª parte
Manjacaze é a sede administrativa de Muchopes, pequena povoação onde o dia a dia decorre lento e calmo. Nas noites cálidas, em que o luar oferece sinfonias de cor, reúnem-se as famílias. Quase toda a população é composta por naturais; gente de pele negra...
Naquele dia, Manjacaze “acordou” diferente. Mais bulício e mais vida. O novo ídolo do clube da terra havia treinado na véspera, e os aficionados da bola tinham ficado maravilhados com a classe de Matateu. No primeiro treino ocupou o lugar de interior direito.
Chegou o dia do primeiro encontro oficial. O público, que acorrera em grande número, aguardava com extraordinária impaciência o começo do jogo. Todos os olhares se dirigiam para o local onde se encontrava Matateu. Ele era a grande esperança dos adeptos do Manjacaze, e já o grande inimigo do clube adversário. Mas Lucas, que já se considerava um homem feliz, que amava o futebol com toda a sua alma, que só se sentia bem quando pontapeava o esférico de couro submetendo-o aos seus caprichos de malabarista, parecia não estar à vontade. Saltitava de um para outro lado tentando fazer desaparecer aquela parcela de nervosismo que tanto o inquietava. Além de tudo o mais, o arbítro do encontro era um antigo jogador metropolitano que se chamava João Belo e, ao que lhe constava, tinha jogado no Belenenses.
Finalmente o jogo começou. Tudo passara já, os nervos, as inquietações, o receio. Matateu estava no seu mundo, o complexo mundo do futebol. Correndo aqui, fintando acolá, rematando imparavelmente às redes adversárias, todo ele era vida, alegria e dinamismo. Os aplausos do público ecoavam estridentes. Era um dia grande para Manjacaze, mas muito maior para Matateu.
Foi no final do prélio que a cena se passou.
João Belo, um nome que ainda hoje vive na recordação dos belenenses, mal deu por terminada a pugna, chegou-se a Matateu e proferiu as seguintes palavras:
- Queres ir para Lisboa jogar no Belenenses?
A frase entrou nos ouvidos de Matateu como uma bomba.
Olhou para o homem que tinha na frente, primeiro com estupefacção aturdido, descrendo do que ouvia.
Depois de um sorriso franco e ingénuo, como se aquilo que João Pedro Belo lhe havia dito não fosse mais do que uma brincadeira.
Não era possível. E logo para o Belenenses, o clube sede do 1º de Maio, aquele onde um dia, já lá iam alguns anos, ele tinha visto pela primeira vez uma bola a sério, onde calçara as primeiras botas e, onde, mais tarde, tinha alinhado. O 1º de Maio ficara sendo o seu clube, mesmo que nunca mais voltasse a vestir a sua camisola. E era do Belenenses que lhe falavam… Não, o sr. Belo estivera a brincar consigo.
“- Queres ir para Lisboa?” Esta frase nunca mais lhe saiu da cabeça.
Lembrou-se dos convites que tinha recebido quando actuava no 1º de Maio. O Benfica, o F.C. Porto, e o União de Coimbra, por intermédio de sócios residentes na capital Moçambicana, já lhes tinham falado neste assunto. Mas nada se concluíra. Agora, naturalmente, seria a mesma coisa. A proposta não passaria daquelas palavras.
“- Queres ir para o Belenenses?”
Entretanto João Belo não demorou o caso; falou com os dirigentes do clube lisboeta, e depois de ter recebido notícias voltou a falar com o jovem Matateu. E nunca mais o largou, enquanto não ouviu o jogador dizer que sim, que ia pensar no assunto com a sua mãe, e depois diria ao sr. Belo o que se passasse.
Mãe Margarida não foi muito renitente. O futuro daquele filho estava escrito: seria o futebol. A bola seria a estrela da sua vida, e ele tinha que a seguir. Só pedia a Deus que tudo fosse para bem do seu Lucas, que ele tivesse sorte.
Decidido, Manjacaze ficaria bem assinalada na história de um dos mais famosos jogadores portugueses de todos os tempos. Foi naquela pequena povoação, para onde o desejo de um emprego o levara, que se iniciara a grande aventura da sua vida.
A proposta foi-lhe apresentada. Não era fabulosa, mas razoável e sobretudo tinha-lhe sido posta com honestidade. Viagem para Lisboa, e no caso de não corresponder ou dar-se mal, teria assegurada a passagem de regresso a Lourenço Marques. Dinheiro? Uma pequena soma que daria para pouco mais das despesas obrigatórias.
Depois tudo se passou com a velocidade de um meteoro. O sr. Cardoso, outro belenenses que vivia nessas longínquas paragens africanas, tratou de todos os documentos. Poucos dias depois de se ter decidido a ir para Lisboa, já Matateu recebia o bilhete de passageiro do barco que o levaria para Lisboa. Faltavam ainda alguns dias para o embarque. Esses dias passaria o jovem Lucas a sonhar com essa cidade das sete colinas, que ele ainda não conhecia, mas que constituía uma autêntica miragem. Lisboa era a cidade dos grandes clubes portugueses e onde o futebol era encarado de maneira diferente daquela com que se fazia em Moçambique. Nas horas em que não “sonhava”, ia despedindo-se dos amigos. Daqueles rapazes que com ele iam para os campos da Praia Vermelha, dos outros que continuavam sentados nas muralhas do rio, de todos os que faziam parte dos grupos do Alto Mahé.
Mas tudo foi antecipado. Chegou um telegrama. Endereço: Clube de Futebol “Os Belenenses” Lisboa. Texto: “Tratar tudo urgentemente stop «Matateu» embarque Lisboa primeiro avião”.
Os calendários fixavam os primeiros dias de Setembro do ano de 1951. Lucas Sebastião da Fonseca olhou o casario. Lourenço Marques era já uma linda cidade. Avenidas largas, altos edifícios de moderna arquitectura, grandes cinemas… Lá mais longe era Alto Mahé, onde ele nascera. Ali era o campo do 1º de Maio onde ele calçou as primeiras botas. Lá estava a Polana; nunca mais iria à pesca. Olhou os familiares e o grupo de amigos que estavam ali a dizer-lhe adeus. Nos olhos da mãe Margarida havia lágrimas. Nos dele, também.
– “Os senhores passageiros do avião que se destina a Lisboa, devem ocupar os lugares”. Mais um adeus, mais um olhar para os lados onde ficava Manjacaze. Foi ali que a “coisa” começou. Os motores da aeronave iniciaram o seu labor.
Na gare havia braços que acenavam, lenços que esvoaçavam dirigiam um último adeus, olhos de onde saiam lágrimas de dor. A dor da despedida.
O número do lugar era vago. O local onde se encontrava não tinha interesse de maior. Só aqueles lenços que acenavam, os olhos que deixavam sair teimosas lágrimas, aquele grupo de pessoas que se tornava cada vez mais pequeno, viviam no cérebro do passageiro. Lá no alto, mais perto das nuvens e mais longe da terra que o viu nascer, Matateu pareceu acordar. Ia para Lisboa, ia jogar num dos grandes clubes portugueses. Pela primeira vez teve medo, um medo que nunca soube explicar.
(5ª parte no Domingo - "A chegada a Lisboa")
Naquele dia, Manjacaze “acordou” diferente. Mais bulício e mais vida. O novo ídolo do clube da terra havia treinado na véspera, e os aficionados da bola tinham ficado maravilhados com a classe de Matateu. No primeiro treino ocupou o lugar de interior direito.
Chegou o dia do primeiro encontro oficial. O público, que acorrera em grande número, aguardava com extraordinária impaciência o começo do jogo. Todos os olhares se dirigiam para o local onde se encontrava Matateu. Ele era a grande esperança dos adeptos do Manjacaze, e já o grande inimigo do clube adversário. Mas Lucas, que já se considerava um homem feliz, que amava o futebol com toda a sua alma, que só se sentia bem quando pontapeava o esférico de couro submetendo-o aos seus caprichos de malabarista, parecia não estar à vontade. Saltitava de um para outro lado tentando fazer desaparecer aquela parcela de nervosismo que tanto o inquietava. Além de tudo o mais, o arbítro do encontro era um antigo jogador metropolitano que se chamava João Belo e, ao que lhe constava, tinha jogado no Belenenses.
Finalmente o jogo começou. Tudo passara já, os nervos, as inquietações, o receio. Matateu estava no seu mundo, o complexo mundo do futebol. Correndo aqui, fintando acolá, rematando imparavelmente às redes adversárias, todo ele era vida, alegria e dinamismo. Os aplausos do público ecoavam estridentes. Era um dia grande para Manjacaze, mas muito maior para Matateu.
Foi no final do prélio que a cena se passou.
João Belo, um nome que ainda hoje vive na recordação dos belenenses, mal deu por terminada a pugna, chegou-se a Matateu e proferiu as seguintes palavras:
- Queres ir para Lisboa jogar no Belenenses?
A frase entrou nos ouvidos de Matateu como uma bomba.
Olhou para o homem que tinha na frente, primeiro com estupefacção aturdido, descrendo do que ouvia.
Depois de um sorriso franco e ingénuo, como se aquilo que João Pedro Belo lhe havia dito não fosse mais do que uma brincadeira.
Não era possível. E logo para o Belenenses, o clube sede do 1º de Maio, aquele onde um dia, já lá iam alguns anos, ele tinha visto pela primeira vez uma bola a sério, onde calçara as primeiras botas e, onde, mais tarde, tinha alinhado. O 1º de Maio ficara sendo o seu clube, mesmo que nunca mais voltasse a vestir a sua camisola. E era do Belenenses que lhe falavam… Não, o sr. Belo estivera a brincar consigo.
“- Queres ir para Lisboa?” Esta frase nunca mais lhe saiu da cabeça.
Lembrou-se dos convites que tinha recebido quando actuava no 1º de Maio. O Benfica, o F.C. Porto, e o União de Coimbra, por intermédio de sócios residentes na capital Moçambicana, já lhes tinham falado neste assunto. Mas nada se concluíra. Agora, naturalmente, seria a mesma coisa. A proposta não passaria daquelas palavras.
“- Queres ir para o Belenenses?”
Entretanto João Belo não demorou o caso; falou com os dirigentes do clube lisboeta, e depois de ter recebido notícias voltou a falar com o jovem Matateu. E nunca mais o largou, enquanto não ouviu o jogador dizer que sim, que ia pensar no assunto com a sua mãe, e depois diria ao sr. Belo o que se passasse.
Mãe Margarida não foi muito renitente. O futuro daquele filho estava escrito: seria o futebol. A bola seria a estrela da sua vida, e ele tinha que a seguir. Só pedia a Deus que tudo fosse para bem do seu Lucas, que ele tivesse sorte.
Decidido, Manjacaze ficaria bem assinalada na história de um dos mais famosos jogadores portugueses de todos os tempos. Foi naquela pequena povoação, para onde o desejo de um emprego o levara, que se iniciara a grande aventura da sua vida.
A proposta foi-lhe apresentada. Não era fabulosa, mas razoável e sobretudo tinha-lhe sido posta com honestidade. Viagem para Lisboa, e no caso de não corresponder ou dar-se mal, teria assegurada a passagem de regresso a Lourenço Marques. Dinheiro? Uma pequena soma que daria para pouco mais das despesas obrigatórias.
Depois tudo se passou com a velocidade de um meteoro. O sr. Cardoso, outro belenenses que vivia nessas longínquas paragens africanas, tratou de todos os documentos. Poucos dias depois de se ter decidido a ir para Lisboa, já Matateu recebia o bilhete de passageiro do barco que o levaria para Lisboa. Faltavam ainda alguns dias para o embarque. Esses dias passaria o jovem Lucas a sonhar com essa cidade das sete colinas, que ele ainda não conhecia, mas que constituía uma autêntica miragem. Lisboa era a cidade dos grandes clubes portugueses e onde o futebol era encarado de maneira diferente daquela com que se fazia em Moçambique. Nas horas em que não “sonhava”, ia despedindo-se dos amigos. Daqueles rapazes que com ele iam para os campos da Praia Vermelha, dos outros que continuavam sentados nas muralhas do rio, de todos os que faziam parte dos grupos do Alto Mahé.
Mas tudo foi antecipado. Chegou um telegrama. Endereço: Clube de Futebol “Os Belenenses” Lisboa. Texto: “Tratar tudo urgentemente stop «Matateu» embarque Lisboa primeiro avião”.
Os calendários fixavam os primeiros dias de Setembro do ano de 1951. Lucas Sebastião da Fonseca olhou o casario. Lourenço Marques era já uma linda cidade. Avenidas largas, altos edifícios de moderna arquitectura, grandes cinemas… Lá mais longe era Alto Mahé, onde ele nascera. Ali era o campo do 1º de Maio onde ele calçou as primeiras botas. Lá estava a Polana; nunca mais iria à pesca. Olhou os familiares e o grupo de amigos que estavam ali a dizer-lhe adeus. Nos olhos da mãe Margarida havia lágrimas. Nos dele, também.
– “Os senhores passageiros do avião que se destina a Lisboa, devem ocupar os lugares”. Mais um adeus, mais um olhar para os lados onde ficava Manjacaze. Foi ali que a “coisa” começou. Os motores da aeronave iniciaram o seu labor.
Na gare havia braços que acenavam, lenços que esvoaçavam dirigiam um último adeus, olhos de onde saiam lágrimas de dor. A dor da despedida.
O número do lugar era vago. O local onde se encontrava não tinha interesse de maior. Só aqueles lenços que acenavam, os olhos que deixavam sair teimosas lágrimas, aquele grupo de pessoas que se tornava cada vez mais pequeno, viviam no cérebro do passageiro. Lá no alto, mais perto das nuvens e mais longe da terra que o viu nascer, Matateu pareceu acordar. Ia para Lisboa, ia jogar num dos grandes clubes portugueses. Pela primeira vez teve medo, um medo que nunca soube explicar.
(5ª parte no Domingo - "A chegada a Lisboa")
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